quarta-feira, 7 de março de 2012

Revista Iluminart do IFSP


Volume 1 número 4

Sertãozinho – Abril de 2010

ISSN: 1984 - 8625

A igualdade pensada e a igualdade

possível: reflexões sobre o conceito de

igualdade em Hobbes, Locke e Rousseau

e considerações sobre sua aplicabilidade

Anelise Vaz1

RESUMO



O conceito de igualdade surge mais




nitidamente na Grécia Antiga, embora


limitado, na prática, às relações

estabelecidas na polis. A desigualdade

existente fora desse âmbito era considerada

natural e desejável para o bom

funcionamento da sociedade. Com Hobbes,

Locke e Rousseau, o pensamento se inverte,

e a igualdade passa a ser natural e inerente

aos homens, enquanto a desigualdade é

vista como uma construção social. Apesar da

contribuição fundamental desses autores

para um melhor entendimento do conceito de

igualdade, persistem os problemas de ordem

prática e política quanto à sua

implementação efetiva nas sociedades

modernas. O ideal de igualdade é,

frequentemente, constrangido pela busca da

liberdade. Sendo ambos valores

imprescindíveis, uma relação de

complementaridade é possível e desejável,

através da defesa de uma liberdade baseada

no respeito à diversidade. Este artigo expõe

1 Anelise Vaz é mestranda do Programa de Pós-

Graduação em Sociologia Política da Universidade

Federal de Santa Catarina e bolsista do CNPq - Brasil.

Florianópolis/SC. Contato: anelisevaz@hotmail.com

brevemente o conceito de igualdade

desenvolvido pelos pensadores citados e

propõe uma reflexão acerca de sua

aplicabilidade real, levando em conta a

dificuldade de conciliação de valores como

igualdade, liberdade e justiça, e defendendo

o respeito à pluralidade humana e à

igualdade de oportunidades entre os

homens.

Palavras-chave: Hobbes; Locke; Rousseau;

igualdade; liberdade.

ABSTRACT

The concept of equality appears more clearly

in ancient Greece, although restricted to the

relations established in the polis. The

inequality prevailing outside that environment

was considered natural and desirable for the

proper functioning of society. In Hobbes,

Locke and Rousseau, this thought is

reversed, and equality becomes to be

understood as natural and inherent to men,

while inequality is perceived as a social

construction. Despite the crucial contribution

of these authors to a better understanding of

the concept of equality, there are still many

political and practical problems concerning its

effective implementation in modern societies.

The ideal of equality is often constrained by

the pursuit of freedom. Since both values are

essential, a relationship of complementarity is

possible and desirable, and can be achieved

through the defense of a freedom based on

the respect for diversity. This article briefly

explains the concept of equality developed by

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the authors cited above and proposes a

reflection on its real applicability, taking into

account the difficulty of reconciling the values

of equality, freedom and justice, and

endorsing the respect for human diversity and

equal opportunities among men.

Keywords: Hobbes; Locke; Rousseau;

equality; liberty.

Até o século XVII, prevalecia a

noção de que a desigualdade entre os seres

humanos era natural, aceitável e, de certa

forma, até desejável. A partir de então,

passam a vigorar teorias, baseadas no

jusnaturalismo e no contratualismo, que

postulavam uma ordem natural de igualdade

entre os homens. Na atualidade, o princípio

da igualdade é tido como um dos principais

pressupostos políticos das sociedades

modernas ocidentais, bem como um dos

mais polêmicos. Existem várias divergências

sobre a precisa noção de igualdade, sua

relação com a justiça, e sobre em que

medida e extensão a igualdade deve ser

almejada ou é praticável.

Na Grécia Antiga, a igualdade só

existia entre os cidadãos, não existindo uma

real igualdade entre os homens. Hannah

Arendt esclarece que para os gregos antigos,

a igualdade era "a própria essência da

liberdade; ser livre significava ser isento de

desigualdade presente no ato de comandar,

e mover-se numa esfera onde não existiam

governo nem governados" (ARENDT, 2009,

p. 42). A política e a vida social eram o mais

importante, e o indivíduo era visto como parte

de um corpo coletivo, fora do qual não se

tinha nenhum valor. Dessa forma, o público

tinha natural prevalência sobre o privado, e a

igualdade existia apenas no domínio político,

na ação entre pares em torno da polis, e

pressupunha a existência de desiguais, que

compunham a maioria da população. Não se

pensava na desigualdade como algo ruim,

pelo contrário, a natural desigualdade entre

os homens garantia a harmonia da

sociedade, na medida em que todos

aceitassem sua própria condição social.

Já em Hobbes, a desigualdade não

era natural, mas constituída com a formação

do Estado. Os homens, no estado de

natureza, teriam igual vulnerabilidade à

violência e igual insaciabilidade dos apetites.

Reconhecendo-se como iguais, eles se

submetem igualmente a um poder soberano

que lhes assegure a conservação da vida. Se

para os gregos a sociabilidade humana era

natural e inerente ao homem, para Hobbes

ela era uma imposição do Estado, fora do

qual prosperava uma condição de guerra de

todos contra todos – estado de guerra.

Assim, a igualdade natural dos homens era

vista por Hobbes como algo ruim, já que

degenerava no estado de guerra, e a

desigualdade formada pelo Estado era

desejável porque regulava os apetites

desenfreados dos homens e restabelecia a

paz.

Locke compartilha da visão de

Hobbes sobre a igualdade entre os homens

no estado de natureza. No entanto, esse

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estado de igualdade não seria

necessariamente belicoso como na teoria

hobbesiana. Apesar da possibilidade da

conflagração de um estado de guerra, o

estado de natureza tendia a ser pacífico e os

homens viveriam num estado de perfeita

liberdade. Esse estado de liberdade também

seria um estado de perfeita igualdade,

(...) pois nada é mais evidente

que criaturas da mesma espécie

e da mesma ordem, todas

aquinhoadas aleatoriamente com

as mesmas vantagens da

natureza e com o uso das

mesmas faculdades, terão

também de ser iguais umas às

outras sem subordinação ou

sujeição (LOCKE, 2006, p. 23).

Locke enfatiza mais o conceito de

liberdade do que o de igualdade. No entanto,

o segundo conceito está explicitado no

primeiro, já que só ao conceber os homens

como iguais pode-se admitir sua liberdade.

Para ele, a desigualdade surge não só a

partir da diferenciação do poder criada pela

formação do Estado, mas também pela

apropriação legal de porções da natureza

além do necessário à sobrevivência e ao

bem-estar de cada um.

Rousseau reitera a tese

contratualista de Hobbes e Locke, mas

discorda de ambos quanto à índole do

homem no estado de natureza. Ele

argumenta que a análise de Hobbes é falha

porque desconsidera que um constante

estado de guerra de todos contra todos

requer processos cognitivos complexos

envolvendo noções de propriedade,

linguagem e cálculos que eram inexistentes

na mente do homem no estado de natureza.

Essas capacidades não seriam naturais, mas

construídas historicamente. O homem natural

seria, portanto, simples, isolado, pacífico e

despreocupado, com características que não

ensejariam o conflito. Rousseau admite que o

desejo de auto-preservação é um dos

princípios norteadores da ação humana,

mas, ao contrário de Hobbes, não o toma

como o único motivo para a ação. Existiriam

dois sentimentos inerentes à alma humana: o

desejo de auto-preservação e a piedade.

Apesar de existir um consenso entre os

contratualistas quanto à natureza da

igualdade, nem sempre ela surge em suas

teorias como um valor positivo. Enquanto

para Rousseau a igualdade vincula-se a um

estágio primitivo de felicidade, a ser

recuperada com o contrato social, para

Hobbes ela liga-se a uma condição miserável

e belicosa, e a desigualdade do pacto social

é benéfica.

Rousseau aborda a questão da

igualdade definindo as desigualdades morais

ou políticas em oposição às desigualdades

naturais ou físicas. As primeiras seriam

produto do declínio da raça humana,

catalizado pela busca pela perfeição,

propriedade e reconhecimento social.

Rousseau admitia que o desenvolvimento

humano, que levou a essa degeneração de

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valores, era inevitável, e que não seria

possível um retorno ao estado de natureza.

O que ele almejava, no entanto, era que as

desigualdades morais e políticas refletissem

as desigualdades naturais e físicas, ao invés

de serem construídas socialmente. A

igualdade verdadeira consistiria, portanto, na

proporção, e só seria benéfica quando

combinada à liberdade.

A contribuição desses autores foi

fundamental para sedimentar o conceito de

igualdade na esfera política, mas apesar da

consensual aceitação da igualdade como

ideal a ser buscado e implantado em todas

as sociedades, persistem problemas de

ordem prática. Bobbio afirma que o simples

reconhecimento do direito à igualdade é

insuficiente se os mecanismos pelos quais

ela será exercida não estiverem definidos.

Segundo ele, ao pensarmos em igualdade,

temos que considerar duas questões:

igualdade entre quem, e igualdade com

relação a que coisas? Questiona: “é mais

justa uma sociedade onde a cada um é dado

segundo o mérito, ou aquela onde a cada um

é dado segundo a necessidade?” (BOBBIO,

1996, p. 20) E ainda: “qual o critério com

base no qual é possível distinguir entre

necessidades merecedoras e não

merecedoras de satisfação?” (BOBBIO,

1996, p. 33)

Bobbio relaciona a igualdade com a

justiça:

Enquanto liberdade e igualdade

são termos muito diferentes tanto

conceitual como axiologicamente,

embora apareçam com

frequência ideologicamente

articulados, o conceito e também

o valor da igualdade mal se

distinguem do conceito e do valor

da justiça na maioria de sua

acepções, tanto que a expressão

liberdade e justiça é

freqüentemente utilizada como

equivalente da expressão

liberdade e igualdade. (BOBBIO,

1996, p. 14)

Uma relação de igualdade é uma

meta desejável na medida em que é justa. A

igualdade plena é utópica, mas deve-se

buscar uma regulação da sociedade que

permita que os indivíduos sejam mais livres e

mais iguais do que sob qualquer outra forma

de convivência.

Hannah Arendt também discorre

sobre a impossibilidade da igualdade plena,

afirmando que a modernidade confundiu a

igualdade política com a igualdade social, e

que só a primeira é realizável. A projeção da

igualdade para os campos social e biológico

não é natural, e ao se pretender uma

igualdade nesses planos, vai-se contra a

condição humana. Os indivíduos não são

iguais por nascimento no sentido em que

cada um possui capacidades e necessidades

diferentes. A igualdade é legítima ao permitir

que cada um mostre seu desempenho, de

acordo com sua capacidade, e a partir daí se

diferencie dos demais. Nesse sentido,

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Hannah Arendt se aproxima de Rousseau, ao

defender, de certa forma, a proporcionalidade

da desigualdade, ou seja, que cada um seja

desigual de acordo com suas características

naturais, e não por imposição social.

Além disso, dada a pluralidade de

consciências e valores do mundo moderno, a

imposição de uma igualdade social e

econômica não é possível a não ser com

autoritarismo. A pluralidade humana é

benéfica e deve ser tolerada, tomando-se o

cuidado de oferecer às pessoas a

possibilidade de desenvolverem seus

potenciais da maneira que melhor lhes

aprouver. É por isso que a igualdade e a

liberdade são valores conflitantes e, ao

mesmo tempo, complementares. Ao mesmo

tempo em que a busca artificial da igualdade

plena limita a liberdade humana de se

diferenciar, a igualdade política só pode ser

exercida se existir liberdade. Se temos a

liberdade de sermos desiguais, queremos, ao

mesmo tempo, a igualdade de sermos livres.

Referências Bibliográficas:

ARENDT, Hannah. A condição Humana. 10ª

ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,

2009. 352 p.

BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade.

Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. 96 p.

HOBBES, Thomas. Leviatã. 2ª ed. São

Paulo: Martin Claret, 2001. 516 p.

LOCKE, John. Segundo tratado sobre o

governo. 2ª ed. São Paulo: Martin Claret,

2006. 174p.

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