Revista Iluminart do IFSP
Volume 1 número 4
Sertãozinho – Abril de 2010
ISSN: 1984 - 8625
A igualdade pensada e a igualdade
possível: reflexões sobre o conceito de
igualdade em Hobbes, Locke e Rousseau
e considerações sobre sua aplicabilidade
Anelise Vaz1
RESUMO
O conceito de igualdade surge mais
nitidamente na Grécia Antiga, embora
limitado, na prática, às relações
estabelecidas na polis. A desigualdade
existente fora desse âmbito era considerada
natural e desejável para o bom
funcionamento da sociedade. Com Hobbes,
Locke e Rousseau, o pensamento se inverte,
e a igualdade passa a ser natural e inerente
aos homens, enquanto a desigualdade é
vista como uma construção social. Apesar da
contribuição fundamental desses autores
para um melhor entendimento do conceito de
igualdade, persistem os problemas de ordem
prática e política quanto à sua
implementação efetiva nas sociedades
modernas. O ideal de igualdade é,
frequentemente, constrangido pela busca da
liberdade. Sendo ambos valores
imprescindíveis, uma relação de
complementaridade é possível e desejável,
através da defesa de uma liberdade baseada
no respeito à diversidade. Este artigo expõe
1 Anelise Vaz é mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia Política da Universidade
Federal de Santa Catarina e bolsista do CNPq - Brasil.
Florianópolis/SC. Contato: anelisevaz@hotmail.com
brevemente o conceito de igualdade
desenvolvido pelos pensadores citados e
propõe uma reflexão acerca de sua
aplicabilidade real, levando em conta a
dificuldade de conciliação de valores como
igualdade, liberdade e justiça, e defendendo
o respeito à pluralidade humana e à
igualdade de oportunidades entre os
homens.
Palavras-chave: Hobbes; Locke; Rousseau;
igualdade; liberdade.
ABSTRACT
The concept of equality appears more clearly
in ancient Greece, although restricted to the
relations established in the polis. The
inequality prevailing outside that environment
was considered natural and desirable for the
proper functioning of society. In Hobbes,
Locke and Rousseau, this thought is
reversed, and equality becomes to be
understood as natural and inherent to men,
while inequality is perceived as a social
construction. Despite the crucial contribution
of these authors to a better understanding of
the concept of equality, there are still many
political and practical problems concerning its
effective implementation in modern societies.
The ideal of equality is often constrained by
the pursuit of freedom. Since both values are
essential, a relationship of complementarity is
possible and desirable, and can be achieved
through the defense of a freedom based on
the respect for diversity. This article briefly
explains the concept of equality developed by
155
Revista Iluminart do IFSP
Volume 1 número 4
Sertãozinho – Abril de 2010
ISSN: 1984 - 8625
the authors cited above and proposes a
reflection on its real applicability, taking into
account the difficulty of reconciling the values
of equality, freedom and justice, and
endorsing the respect for human diversity and
equal opportunities among men.
Keywords: Hobbes; Locke; Rousseau;
equality; liberty.
Até o século XVII, prevalecia a
noção de que a desigualdade entre os seres
humanos era natural, aceitável e, de certa
forma, até desejável. A partir de então,
passam a vigorar teorias, baseadas no
jusnaturalismo e no contratualismo, que
postulavam uma ordem natural de igualdade
entre os homens. Na atualidade, o princípio
da igualdade é tido como um dos principais
pressupostos políticos das sociedades
modernas ocidentais, bem como um dos
mais polêmicos. Existem várias divergências
sobre a precisa noção de igualdade, sua
relação com a justiça, e sobre em que
medida e extensão a igualdade deve ser
almejada ou é praticável.
Na Grécia Antiga, a igualdade só
existia entre os cidadãos, não existindo uma
real igualdade entre os homens. Hannah
Arendt esclarece que para os gregos antigos,
a igualdade era "a própria essência da
liberdade; ser livre significava ser isento de
desigualdade presente no ato de comandar,
e mover-se numa esfera onde não existiam
governo nem governados" (ARENDT, 2009,
p. 42). A política e a vida social eram o mais
importante, e o indivíduo era visto como parte
de um corpo coletivo, fora do qual não se
tinha nenhum valor. Dessa forma, o público
tinha natural prevalência sobre o privado, e a
igualdade existia apenas no domínio político,
na ação entre pares em torno da polis, e
pressupunha a existência de desiguais, que
compunham a maioria da população. Não se
pensava na desigualdade como algo ruim,
pelo contrário, a natural desigualdade entre
os homens garantia a harmonia da
sociedade, na medida em que todos
aceitassem sua própria condição social.
Já em Hobbes, a desigualdade não
era natural, mas constituída com a formação
do Estado. Os homens, no estado de
natureza, teriam igual vulnerabilidade à
violência e igual insaciabilidade dos apetites.
Reconhecendo-se como iguais, eles se
submetem igualmente a um poder soberano
que lhes assegure a conservação da vida. Se
para os gregos a sociabilidade humana era
natural e inerente ao homem, para Hobbes
ela era uma imposição do Estado, fora do
qual prosperava uma condição de guerra de
todos contra todos – estado de guerra.
Assim, a igualdade natural dos homens era
vista por Hobbes como algo ruim, já que
degenerava no estado de guerra, e a
desigualdade formada pelo Estado era
desejável porque regulava os apetites
desenfreados dos homens e restabelecia a
paz.
Locke compartilha da visão de
Hobbes sobre a igualdade entre os homens
no estado de natureza. No entanto, esse
156
Revista Iluminart do IFSP
Volume 1 número 4
Sertãozinho – Abril de 2010
ISSN: 1984 - 8625
estado de igualdade não seria
necessariamente belicoso como na teoria
hobbesiana. Apesar da possibilidade da
conflagração de um estado de guerra, o
estado de natureza tendia a ser pacífico e os
homens viveriam num estado de perfeita
liberdade. Esse estado de liberdade também
seria um estado de perfeita igualdade,
(...) pois nada é mais evidente
que criaturas da mesma espécie
e da mesma ordem, todas
aquinhoadas aleatoriamente com
as mesmas vantagens da
natureza e com o uso das
mesmas faculdades, terão
também de ser iguais umas às
outras sem subordinação ou
sujeição (LOCKE, 2006, p. 23).
Locke enfatiza mais o conceito de
liberdade do que o de igualdade. No entanto,
o segundo conceito está explicitado no
primeiro, já que só ao conceber os homens
como iguais pode-se admitir sua liberdade.
Para ele, a desigualdade surge não só a
partir da diferenciação do poder criada pela
formação do Estado, mas também pela
apropriação legal de porções da natureza
além do necessário à sobrevivência e ao
bem-estar de cada um.
Rousseau reitera a tese
contratualista de Hobbes e Locke, mas
discorda de ambos quanto à índole do
homem no estado de natureza. Ele
argumenta que a análise de Hobbes é falha
porque desconsidera que um constante
estado de guerra de todos contra todos
requer processos cognitivos complexos
envolvendo noções de propriedade,
linguagem e cálculos que eram inexistentes
na mente do homem no estado de natureza.
Essas capacidades não seriam naturais, mas
construídas historicamente. O homem natural
seria, portanto, simples, isolado, pacífico e
despreocupado, com características que não
ensejariam o conflito. Rousseau admite que o
desejo de auto-preservação é um dos
princípios norteadores da ação humana,
mas, ao contrário de Hobbes, não o toma
como o único motivo para a ação. Existiriam
dois sentimentos inerentes à alma humana: o
desejo de auto-preservação e a piedade.
Apesar de existir um consenso entre os
contratualistas quanto à natureza da
igualdade, nem sempre ela surge em suas
teorias como um valor positivo. Enquanto
para Rousseau a igualdade vincula-se a um
estágio primitivo de felicidade, a ser
recuperada com o contrato social, para
Hobbes ela liga-se a uma condição miserável
e belicosa, e a desigualdade do pacto social
é benéfica.
Rousseau aborda a questão da
igualdade definindo as desigualdades morais
ou políticas em oposição às desigualdades
naturais ou físicas. As primeiras seriam
produto do declínio da raça humana,
catalizado pela busca pela perfeição,
propriedade e reconhecimento social.
Rousseau admitia que o desenvolvimento
humano, que levou a essa degeneração de
157
Revista Iluminart do IFSP
Volume 1 número 4
Sertãozinho – Abril de 2010
ISSN: 1984 - 8625
valores, era inevitável, e que não seria
possível um retorno ao estado de natureza.
O que ele almejava, no entanto, era que as
desigualdades morais e políticas refletissem
as desigualdades naturais e físicas, ao invés
de serem construídas socialmente. A
igualdade verdadeira consistiria, portanto, na
proporção, e só seria benéfica quando
combinada à liberdade.
A contribuição desses autores foi
fundamental para sedimentar o conceito de
igualdade na esfera política, mas apesar da
consensual aceitação da igualdade como
ideal a ser buscado e implantado em todas
as sociedades, persistem problemas de
ordem prática. Bobbio afirma que o simples
reconhecimento do direito à igualdade é
insuficiente se os mecanismos pelos quais
ela será exercida não estiverem definidos.
Segundo ele, ao pensarmos em igualdade,
temos que considerar duas questões:
igualdade entre quem, e igualdade com
relação a que coisas? Questiona: “é mais
justa uma sociedade onde a cada um é dado
segundo o mérito, ou aquela onde a cada um
é dado segundo a necessidade?” (BOBBIO,
1996, p. 20) E ainda: “qual o critério com
base no qual é possível distinguir entre
necessidades merecedoras e não
merecedoras de satisfação?” (BOBBIO,
1996, p. 33)
Bobbio relaciona a igualdade com a
justiça:
Enquanto liberdade e igualdade
são termos muito diferentes tanto
conceitual como axiologicamente,
embora apareçam com
frequência ideologicamente
articulados, o conceito e também
o valor da igualdade mal se
distinguem do conceito e do valor
da justiça na maioria de sua
acepções, tanto que a expressão
liberdade e justiça é
freqüentemente utilizada como
equivalente da expressão
liberdade e igualdade. (BOBBIO,
1996, p. 14)
Uma relação de igualdade é uma
meta desejável na medida em que é justa. A
igualdade plena é utópica, mas deve-se
buscar uma regulação da sociedade que
permita que os indivíduos sejam mais livres e
mais iguais do que sob qualquer outra forma
de convivência.
Hannah Arendt também discorre
sobre a impossibilidade da igualdade plena,
afirmando que a modernidade confundiu a
igualdade política com a igualdade social, e
que só a primeira é realizável. A projeção da
igualdade para os campos social e biológico
não é natural, e ao se pretender uma
igualdade nesses planos, vai-se contra a
condição humana. Os indivíduos não são
iguais por nascimento no sentido em que
cada um possui capacidades e necessidades
diferentes. A igualdade é legítima ao permitir
que cada um mostre seu desempenho, de
acordo com sua capacidade, e a partir daí se
diferencie dos demais. Nesse sentido,
158
Revista Iluminart do IFSP
Volume 1 número 4
Sertãozinho – Abril de 2010
ISSN: 1984 - 8625
Hannah Arendt se aproxima de Rousseau, ao
defender, de certa forma, a proporcionalidade
da desigualdade, ou seja, que cada um seja
desigual de acordo com suas características
naturais, e não por imposição social.
Além disso, dada a pluralidade de
consciências e valores do mundo moderno, a
imposição de uma igualdade social e
econômica não é possível a não ser com
autoritarismo. A pluralidade humana é
benéfica e deve ser tolerada, tomando-se o
cuidado de oferecer às pessoas a
possibilidade de desenvolverem seus
potenciais da maneira que melhor lhes
aprouver. É por isso que a igualdade e a
liberdade são valores conflitantes e, ao
mesmo tempo, complementares. Ao mesmo
tempo em que a busca artificial da igualdade
plena limita a liberdade humana de se
diferenciar, a igualdade política só pode ser
exercida se existir liberdade. Se temos a
liberdade de sermos desiguais, queremos, ao
mesmo tempo, a igualdade de sermos livres.
Referências Bibliográficas:
ARENDT, Hannah. A condição Humana. 10ª
ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2009. 352 p.
BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade.
Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. 96 p.
HOBBES, Thomas. Leviatã. 2ª ed. São
Paulo: Martin Claret, 2001. 516 p.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o
governo. 2ª ed. São Paulo: Martin Claret,
2006. 174p.